quinta-feira, 10 de julho de 2008

A cor das saudades

De que cor são as saudades? Brancas mesmo ao princípio, quando só vemos azul, o azul infinito de todos os começos, ou então daquele amarelo - claro, cor de quarto de menina no princípio do século, suaves, diáfanas, quase imperceptíveis. Saudades brancas, as da infância, dos lanches com as avós nas pastelarias da moda, dos natais em família, da primeira vez que ficámos de castigo na escola, do cheiro dos bolos que se escapava por baixo da porta da cozinha. Saudades da idade do mata – borrão com espessura de 12 milímetros, em que ouvimos, vemos, aprendemos tudo. São saudades doces, pacificadas, confortáveis, familiares, quase sempre permanentes e no entanto guardadas na memória.
Depois, e por grau de importância vêm as saudades de cores berrantes da adolescência, da primeira vez que o coração começou a bater tão alto que as pessoas se viraram para nós no meio da rua, da primeira vez que se ousou dar a mão, do primeiro chumbo no liceu, daquele primeiro acto de rebeldia em que desafiámos os nossos pais numa discussão e fomos metidos na ordem . São as saudades rebeldes, vermelho vivo, azul turquesa, cor de laranja, numa mistura de cores e sabores agri - doce de que é feita toda a idade do armário, quando nos fechamos para o mundo convencidos que o temos na mão.
Depois vêm as saudades do primeiro amor. Do primeiro beijo, das primeiras cartas trocadas, às vezes em forma de bilhetes enrolado até ficarem mais finos que uma caneta BIC para depois serem desenrolado pelo nosso amor. Saudades dos primeiros beijos dados às escondidas nas escadarias do liceu ou numa paragem de autocarro deserta. Saudades da primeira noite de paixão em que prometemos este e o outro mundo, em que fomos apanhar flores mesmo antes do dia se levantar, partimos conchas ao meio e demos a outra metade àquele que julgávamos ser mesmo a outra metade. E depois, saudades da primeira vez que nos rejeitaram, o peito inexperiente a sangrar, as lágrimas descontroladas e a voz a tremer, as noites de insónias a encher cartas que nunca foram enviadas, implorando um regresso, um passo atrás, só mais uma vez, só mais uma vez…
Gosto de imaginar as saudades às cores, amarelas, azul turquesa, de cores vivas, às bolinhas ou às riscas, mas sempre alegres como confettis e serpentinas em festas de crianças.
Ter saudades boas é uma das melhores formas de gostar de alguém. Saudades boas, que sabem, cheias de memórias doces e frescas, saudades de tardes passadas a ler, de passeios na praia a conversar, de cartas escritas e por escrever, saudades de um futuro próximo, ainda incerto, ma cada vez mais perto, cada vez mais perto…
Saudades claras, luminosas como estrelas, abertas, dadas, como mãos estendidas, saudades caladas mas não esquecidas, à espera do momento certo para morrerem nos braços do nosso amor…
São essas as saudades boas, as saudades certas, que não doem, não cansam, não cobram e não pesam, que só conhecem o verbo dar que fazem com que aqueles de quem mais saudades temos, que nem sempre vemos quando queremos, mas que sabem estar sempre próximos e atentos, tenham sempre saudades de nós.

In “As crónicas da Margarida” de Margarida Rebelo Pinto
Antonio Variacoes - Cancao Do Engate

Tu estas livre e eu estou livre
E ha uma noite para passar
Porque nao vamos unidos
Porque nao vamos ficar
Na aventura dos sentidos

Tu estas só e eu mais só estou
Tu que tens o meu olhar
Tens a minha mao aberta
À espera de se fechar
Nessa tua mao deserta

Vem que o amor
Nao é o tempo
Nem é o tempo
Que o faz
Vem que o amor
É o momento
Em que eu me dou
Em que te das

Tu que buscas companhia
E eu que busco quem quiser
Ser o fim desta energia
Ser um corpo de prazer
Ser o fim de mais um dia

Tu continuas à espera
Do melhor que ja nao vem
E a esperanca foi encontrada
Antes de ti por alguém
E eu sou melhor que nada

Corações ao alto

Há muitos tipos de corações. Há corações pequenos e tímidos, há corações grandes e abertos, há corações onde é preciso meter requerimentos de papel azul e selo de garantia para abrirem as portas, e outros, cheios de janelas, frescos e arejados. Há corações com trancas, segredos e sistema de alarme que são como cofres de bancos. Corações sombrios e desconfiados, com fechaduras secretas e portas falsas. Corações que parecem simples, mas quando se entra la dentro, espera-nos o mais perverso dos labirintos. E há corações que são como jardins públicos, onde pessoas de todas as idades podem entrar e descansar. Há corações que são como casas antigas, cheios de mistérios e fantasmas, com jardins secretos e sótãos poeirentos, carregados de memórias e recordações e há corações simples e fáceis de conhecer, descontraídos e leves, sempre em férias como tendas de campismo. Há corações viajantes, temerários e corajosos, como barcos à vela que nos parecem bonitos ao longe, mas que nos deixam sempre na boca o sabor amargo de nunca os conseguirmos abarcar…há corações missionários, despojados e enormes. Há corações que são paquetes de luxo, onde o requinte é a palavra – chave para baterem…há corações que são como borboletas e voam de um lado para o outro sem parar, numa pressa ansiosa de viver tudo antes que a vida se acabe…
Há corações que são como os elefantes do zoo, muito grandes, pacíficos e passivos que aceitam viver limitados pelos outros e que até tocam o sino se os tratarmos bem e lhe dermos mimos e corações aventureiros, sempre prontos para partir em difíceis expedições e se ultrapassarem a si mesmos. Há corações rebeldes e selvagens que não suportam laços nem correntes, corações predadores que só sobrevivem se caçarem outros corações, que correm tão depressa como chitas e matam como leoas, e depois há os corações gnus, que sabem que vão ser caçados mas não fogem ao seu destino…
Há corações que são como rosas, caprichosos e cheios de espinhos e outros que são campainhas, simplórios e carentes sempre a chamar por afecto. Há corações que são como girassóis, rodando as suas paixões ao sabor do brilho e da glória e corações como batata – doce, que só crescem e se alimentam se estiveram bem guardados e escondidos debaixo da terra.
Há corações que são como pianos, altivos e majestosos onde só tocam os que possuem a arte de bem seduzir. E corações como harpas, onde uma simples festa provoca uma sinfonia…
Há corações incondicionais que vivem tão maravilhados em descobrir a grandeza de outros corações que às vezes se esquecem de si próprios. Há corações estrategas, que batem ao ritmo de esquemas e planos, corações transgressores que vivem para amar clandestinamente e só sabem desejar o proibido e corações conservadores, que só se entregam quando tudo é de acordo com os seus padrões e valores.
Há corações a motor, que vivem só para o trabalho e corações poetas que só se alimentam de sonhos e ilusões. Há corações teatrais, para quem a vida é uma comédia ou uma tragédia e corações cinéfilos, que registam a beleza de cada momento em frames de paixão…
Há corações duros como o aço, sem arritmias, onde nada risca e faz mossa e corações de plasticina que se moldam às formas dos corações que amam. Há corações de papel, bonitos e frágeis que se amachucam facilmente e desbotam à primeira lágrima, há corações de vidro que quando se estilhaçam nunca mais se recompõem e corações de porcelana que depois de se partirem ainda abem colar os destroços e começar de novo.
Há corações orientais, espiritualizados e serenos e corações ocidentais hedonistas e ambiciosos, corações britânicos onde tudo é meticulosamente arrumado segundo costumes e convenções e corações latinos, que batem ao som da paixão e da loucura.
Há corações de uma só porta que são como grandes casas de família e outros de duas portas, uma para a sociedade e outra para a intimidade. Há corações que são como conventos, silenciosos e enclausurados e outros que são como hotéis, onde se paga o amor sem amor, escandalosos e promíscuos. Há corações parasitas, que vivem de afecto dos outros sem nada dar e corações dadores que só são felizes na entrega.
Mas há ainda uma outra espécie de corações, os corações hospedeiros, que sabem receber e fazer sentir os outros corações como se estivessem em casa, que dão e aceitam amor sem se fixarem, que tratam cada passageiro como se fosse o último, enquanto procuram o seu coração gémeo, sempre na esperança secreta e nunca perdida de um dia deixarem de viajar e sossegarem para a vida.

In “As crónicas da Margarida” de Margarida Rebelo Pinto


Cada pessoa tem o seu tipo de coração..e com tanto tipo alguns ate misturam caracteristicas de varios tipos..